Personagens e Ficção (in Portuguese)

Quando observo actualmente algumas telenovelas portuguesas apercebo-me que, embora os motivos devam ser as audiências e as expectativas de um painel de teste e as preferências dos espectadores, que vão influenciando a escrita da narrativa à medida que vai sendo filmada, boas ideias se vão perdendo. E a ficção fica, inadvertidamente, mais coxa mas mais próxima da realidade.

Com isto quero dizer que há uma mulher que entra em ruptura com o marido, já não o pode ver à frente por uma série de traições e desentendidos. E entra em acção um homem simpático que capta a sua atenção e ambos começam a aproximar-se e a ter contactos. É óbvia a ideia: vai-se consumar a separação e ela ficará com o “bonzinho”. Mas na realidade não é isso que acontece. Após ameaças, pedidos de divórcio, etc, o marido vai ficando mole, vai pedindo desculpas, vai-se tornando “bonzinho” e o outro homem acaba por nunca transpôr a barreira física, nunca deixa de ser simpático, torna-se uma personagem que não desenvolve. E acaba por sair da novela. E a mulher acaba por ficar casada. Em resumo: uma separação óbvia que acabou por não acontecer.

Outro tipo de cena: casais que passam a vida em birras. Mas que nunca são sérias. E do princípio ao fim da novela, se limitam a ser irmãos dos protagonistas. E nunca têm uma acção que interesse. Mas também não rompem. Não se percebe qual o seu papel, e são apelidados de “sem sal”. Quem disse que a vida tinha sempre de ter sal? A verdade é que na realidade as pessoas normais não têm nada de especial. E há justamente casais que pura e simplesmente são aborrecidos. E o seu papel é meramente o de existir.

Dois irmãos que nunca falam. Que dançam nalgumas cenas. Noutras passam na rua, estão na praia ou na escola. São recorrentes ao longo do ano todo, vemo-los sempre. Agora até aparecem no genérico. Mas nunca são creditados. Há pessoas assim na vida. Nunca falamos com elas, não temos interacção com elas. Mas sabemos que existem, cruzamo-nos todos os dias. Até a figuração recorrente pode ter algo a mostrar.

E assim, com histórias que não levam a lugar nenhum, com personagens que não têm papel, com outros cujo único papel é andar por ali, se constrói uma massa ficcional importante no espaço hoje em dia. E verificamos que só “acontecem coisas” a meia-dúzia de personagens realmente importantes. E a esses parece que “acontece tudo”. Já acabou o tempo em que “tudo acontecia a toda a gente e tudo tinha de fazer sentido”. Na vida real não é assim. Muitas coisas nos escapam. Muitas coisas aparecem só porque sim. E não percebemos. Não sabemos donde vieram nem para onde foram. Nem qual o seu papel no enredo. E a ficção também se cose com essas linhas.

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