Comprovo com experiências empíricas ocasionais com os meus amigos e conhecidos que o mundo da referencialidade musical é volátil e amplamente subjectivo. Um processo cultural e social em curso permanente. Componho música com ambientes, sonoridades, muitas delas clichés, para tentar evocar certas imagens ou sensações e depois espanto-me com as reações completamente díspares que acontecem. «Como é possível não teres ouvido uma praia ali? Ou uma Savana? Ou o vento? Não ouviste que aquilo era o vento?», e onde eu coloquei e ouvi o vento, a outra pessoa ouviu o mar, onde eu ouço uma savana, outros ouvem um deserto ou um prado, onde eu ouço um pôr-do-sol, outros ouvem nublado. É possível ouvir-se um pôr-do-sol?
Aparentemente a dificuldade em todas estas evocações e todos estes mal entendidos reside nos processos para se lá chegar. E assim se comprova uma velhinha ideia já veiculada desde o tempo do Hanslick que a música nada transmite a não ser ela própria. Tudo o resto são associações extemporâneas e pessoais adquiridas no seio de construções culturais e sociais. Para muitos de vós será óvio que uma escala menor é mais triste que uma escala maior. Sempre fomos ensinados assim. Para muitos de vós um coro de rapazinhos a cantar estará sempre associado a momentos celestiais. Se calhar uma celesta ficará sempre associada a magia e mistério. Mas essas coisas não acontecem pela música nem pelo timbre dos instrumentos.
Acontecem porque já aconteceram antes. Porque antes de termos consciência do que ouvíamos fomos bombardeados com uma série de contextos onde tal sucedeu. Porque sempre que nos falam de Páscoa, missa, céu, nos filmes, na televisão, na rádio, na internet, alguém se lembra de pôr coros de rapazes a cantar. E então ficamos condicionados. E sempre que imaginamos tal situação já não imaginamos uma sem a outra. Mas se calhar a um nativo de uma tribo distante, que nunca tenha estado em contato com tais contextos um coro de rapazes a cantar será apenas e só isso mesmo. E não verá anjos nem céu. Até porque se calhar o conceito de “anjo” nem existe para ele. E o conceito de céu será outra coisa, um azul perene que sempre o perseguiu associado a outro tipo de memórias, quem sabe a danças da chuva. E para ele o céu poderá ser um ritmo sincopado em batuques e nunca um coro de rapazes.
A música que nos parece linda, triste, desafinada, parece-nos sempre por comparação com o que já conhecemos e temos vindo a conhecer desde a infância, desde que apreendemos os símbolos, a linguagem, e que começamos a associar referências e memórias. E isto será sempre um fenómeno cultural e social. E por isso, sim, é possível construir clichés, e eventualmente transmitir mensagens, ou evocar sensações. Mas elas já lá estão dentro de cada um de nós. O segredo do código já nos foi ensinado antes. E por isso, não vos espantais se ele só funcionar para as pessoas mais próximas do vosso imaginário cultural.
«A música não é uma linguagem que descreve a maneira como a sociedade aparenta ser, mas sim uma expressão metafórica de sensações associadas à maneira como realmente é» [1].
[1] BLACKING, John, 1983, How musical is man?, University of Washington press, Seattle and London, p. 104