― Sem título ―
O rapaz[1] vinha pela rua abaixo. Estacou junto ao cruzamento, ajeitando a malha da camisola[2]. Nessa altura passou a D. Alzira[3] que o cumprimentou:
― Saúde! Então, menino, onde vais? Ainda agora passei pela tua tia[4], ali junto ao poço[5].
― Sebença[6]! Vou até ao rio[7].
― Ah, o rio! Frondoso, frívolo, frenético[8]. Ainda por te lá matas, meu menino[9].
― O Julinho[10] pancou-se[11] lá anteontem.
― Oh, não me diga[12]! Cadeu-se[13]!…
[1] O autor não identifica o rapaz, o que quanto ao Dr. Carvalho Pessanha (1993, p. 42) significa que «é uma intenção pessoal de desviar timidamente as atenções da sua interposta pessoa, ocultando a faceta auto-biográfica». Isto leva-nos a crer que o rapaz seria o próprio autor do texto.
[2] Nesta altura era bastante vulgar o uso de camisolas de malha nos dias mais frios do ano (Lovejoy, 1990, pp. 124-8). Isto poder-nos-ia levar a crer que a narrativa se passaria no Outono ou no Inverno, no entanto, e atentando, ao seguimento do conto percebemos que não faria sentido o rapaz dirigir-se para o rio, onde recentemente um amigo teria nadado, em tal estação, pelo que viríamos a deduzir que estaríamos num mês de Verão, a época do ano em que tradicionalmente os rapazes da aldeia iam banhar-se, muito mais fresca que o habitual. Comparando os registos meteorológicos dos últimos cinquenta anos, da região, (Oliveira, 1977) isto permite-nos aferir, tendo por base o registo biográfico e cronológico do autor (Perdigão, 1981) que os factos narrados neste conto ocorreram em 1933 ou 1938, tendo o autor doze ou dezasseis anos.
[3] Provavelmente refere-se a Alzira da Conceição Lopes, amiga íntima de uma das tia do autor e residente na aldeia à época descrita. Consultando as fontes (Perdigão, 1981; Almeida, 1966) foi possível aferir que a dita senhora «se vestia habitualmente de preto», estando de luto desde 1924 pela morte do marido, e «andava possivelmente envolvida com o actual presidente da junta de freguesia», a quem «levava com frequência tortas de maçã». As más-línguas, inclusive admitiam que a sua filha mais nova, Adelaide Lopes (n. 1919) seria fruto da relação extra-conjugal com o presidente da junta, que já se manteria há muitos anos e com conhecimento de causa do falecido marido, um sujeito beneplácito[i] e algo apático que nunca terá feito nada para defender a sua honra, deixando-se definhar até uma morte prematura. Num pequeno diário artesanal encontrado foi possível aferir do desprezo a que Alzira era habitualmente votada pelas senhoras mais castas e respeitadoras da aldeia.
[4] A tia refere-se provavelmente a Arminda Pereira (1883-1952), uma das irmãs do pai do autor, residente na aldeia e «íntima amiga de Alzira da Conceição, com quem mantinha longas horas de conversa» (Perdigão, 1981, p. 163). Segundo o diário manuscrito de Adelaide Lopes, Arminda era uma senhora de reputação duvidosa dado que nunca casou, nem se lhe conheceram amantes. Pelo contrário, andava sempre rodeada de mulheres, e por vezes dormiam em sua casa desconhecidas de aldeias vizinhas. Tomando em consideração os inúmeros serões que passava junta com Alzira, fortes suspeitas de trocas comerciais entre ambas floresceram, embora nunca nada tenha sido atestado na literatura convencional.
[5] O Poço segundo a conservatória de Alijó, seria o nome genérico dado a um terreno de vinha e amendoeiras 450 metros a noroeste da aldeia. Era um terreno, na altura, bastante recatado e escondido onde muita gente aproveitava, para se escapulir, para fazer coisas mais indecorosas longe dos olhares da população.
[6] Contracção de “A Sua Benção”, saudação muito costumeira nos tempos rurais do princípio e meio do século, geralmente proferida pelos infantes a pessoas mais velhas a quem guardavam respeito ou reverência.
[7] Certamente o Rio Pinhão, afluente do Douro, que se acerca de várias aldeias do concelho de Alijó, e se situa bastante próximo de Vilar da Cardiça.
[8] Tentativa patética de aliteração com mudança desastrosa de registo. A interlocutora na vida real nunca proferiria uma frase destas, pelo que o autor incorreu num cataclismo estético: não trouxe nada de novo à narrativa, além de uma sensação de quebra, em que se empresta um momento melancólico que não tem razão de existir. A ter razão de existir especula-se que Alzira se tenha relembrado de bons momentos passados junto ao rio, possivelmente em trocas comerciais ora com o presidente da Junta, ora com a sua amiga íntima Arminda, ou talvez com ambos, não necessariamente e provavelmente nunca ao mesmo tempo, nem na mesma ocasião. No entanto, ressalvo que seria extremamente interessante se tal tivesse ocorrido, e tal, poderia emprestar um novo brilho à caracterização da personagem. Ficará a investigação deste caso aberta para estudos futuros.
[9] A preocupação justifica-se. No troço do Rio Pinhão mais próximo de Vilar de Cardiça, este é muito irregular e pedregoso, e não raro os jovens mais destemidos sofriam acidentes fatais. Mais do que afogamentos, muitos jovens faleciam por mergulhar sem cuidado e se estatelarem contra as fragas que abundam no local, sofrendo concussões, traumatismos, fracturas ou perdendo a consciência e afogando-se (Meireles, 1975, pp. 148-9).
[10] Miguel Júlio Moreira (1922-1991), residente da aldeia e amigo de infância do autor. Estima-se que tenha namorado durante a adolescência com Adelaide Lopes, relação efémera da qual recolheu muita saliva, pouco juízo e nenhuma descendência a assinalar.
[11] Derivado de Pancada. Provincialismo bacoco e uma tentativa frustrada de emprestar realismo ao diálogo já que o termo não era aplicado nas comunidades rurais do Norte de Portugal. Ao invés, “pancar-se” é bastante utilizado no Brasil com aplicações como “Eu me panquei” para aleijar-se, ou “Panquei-os” para dar porrada. Neste contexto o sentido é o de explicar que Júlio se tenha magoado no rio. A este respeito ver a nota 9.
[12] Não se compreende o tratamento formal de Alzira ao rapaz. Será expectável que possa ser uma simples gralha ou omissão. Outra hipótese seria um assomo de classe social da Linha de Cascais à cabeça de Alzira, no entanto, tal não seria credível e, pelo contrário, seria desconexo e desconchavado ou uma tentativa sofrível de fazer humor apressadamente. Poderia ser plausível dado as já demonstradas fracas capacidades literárias do autor que constantemente nos tem vindo a surpreender com malabarismos literários medíocres e inadequados ao contexto.
[13] Perante um caso destes Serranito (2010) afere que «Não compreendo o que o autor quer dizer com isto» [ii], no entanto é nossa opinião que se trata de mais uma tentativa falhada de o autor impor realismo à narrativa com o uso de um regionalismo típico. Tal palavra, no entanto, não se encontra atestada, e não é líquido o que ela queira dizer. Perdigão (1981, p. 177) estima que possa ser “Cozeu-se”, uma palavra bastante utilizada na região como sucedâneo de outra sua parónima com sentido bastante pejorativo, implicando por vezes trocas comerciais, mas neste caso com sentido que alguém que se meteu numa situação bastante difícil.
Referências:
Almeida, Deolinda (ed.) Boletim da Sociedade Recreativa de Vilar da Cardiça, Alijó: Edição da Câmara Municipal de Alijó, 1966
Lovejoy, Millicent. Habits and Culture of Portuguese people, London: Fever and Fever, 1990
Meireles, Artur. Hidrografia a Norte: Afluências e Confluências. Lisboa: Melro Pardo, 1975
Oliveira, Sousa. O Tempo que nos assola, Lisboa: Sociedade Portuguesa de Geografia, 1977
Perdigão, Antero. Vida e obra dos pequenos autores esquecidos, Coimbra: Árida, 1981
Pessanha, Carvalho. A Estrutura Narrativa Galaico-Transmontana, Porto: Épica, 1993
Serranito, F. Excursos sobre a Lucidez e sua ausência, Moita: Fedrona, 2010.
[i] Serranito considera que beneplácito é um substantivo e portanto considera-o mal aplicado pelo comentador.
[ii] Serranito desconsidera a ficção da sua própria citação, protestando «com tanta coisa pertinente que eu poderia dizer, eu apareço a dizer que não compreendo?».