– É uma tragédia quando tens a cidade a teus pés e, na realidade, sentes que ela te usa…
– O quê?
– Nada, nada… estava aqui a divagar um pouco.
– Aquele pombo parece coxo. Se calhar tem uma pata partida ‘tadinho…
– Sabes é triste quando envelhecemos e nos apercebemos que nada mais que um trapo somos. Um pano de chão!
– Se calhar algum carro, ia mais depressa e ele não conseguiu voar a tempo.
– Usados e abusados, e no final, para quê? Para nada, para acabarmos aqui, amorfos, num banco de jardim a atirar pão a pombos.
– Oh homem, que raio estás para aí tu a benzer?
– Estou a falar de mim! De mim e de ti! De todos! Destas almas que povoam esta Lisboa, esta infecta esterqueira em que isto se tornou!
– Ai, que me arrepelas só de usares esses termos, mas afinal que vem a ser isto?
– Isto é que estive a pensar!
– Olá, cuidado. Isso faz-te mal!…
– Engraçada. É verdade Adosinda, não vês como o tempo passou?
– Ora homem, ainda não é tarde, só são quatro e meia, ainda tens muito sol.
– Refiro-me à vida. Estamos velhos. Gastos. Usados.
– Porquê? Agora também queres ir lá como a outra à Dermoestética pôr-te mais novo?
– Não é isso. Refiro-me ao sentido disto tudo.
– Então mas que vem a ser isto tudo que eu é que não estou a perceber nada…
– Adosinda, o que fizeste tu na vida?
– Então homem que havia de ter feito? Trabalhei, casei-me contigo, tive os catraios e criámo-los, graças a Deus, e agora estou a gozar a minha reformita.
– É isso mesmo a que me refiro Adosinda.
– Porquê homem não estás bem? Falta-te algo em casa? Que eu saiba sempre tivemos pão na mesa.
– É pouco.
– Então alembra-me para amanhã ir ao Pingo Doce trazer mais, cuidava que ainda havia meio cacete.
– Não é isso. Refiro-me que tudo isso é pouco. Sabes que quando vim para aqui, vim a ganhar quatro escudos! Quatro escudos! E considerava-me eu um homem cheio de sorte e de sonhos. Ali na Rua do Ouro a atender os fregueses.
– E fizeste tu muito bem. Olha que quatro escudos, para a época, já não era mau. Ganhavas mais que eu na praça.
– Uma vida toda, um moiro de trabalho, para chegar a esta idade, sem gozar nada.
– Sem gozar nada? Ataum e quando fomos ali a Tróia à praia, que foi tão bonito? Atravessar no barco…
– Oh mulher, tu vês televisão? Tu sabes o que é a realidade? Tu sabes de que é feita esta cidade onde vivemos?
– Ataum não? É feita de tijolo e cimento e madeira e que tais. E agora de lata por tudo quanto é lado a esfumaçar. E de gente, gente que trabalha muito.
– Olha, gente que trabalha muito e gente que não faz nenhum e ganha muito na mesma.
– Lá isso é verdade, há sempre aqueles a quem tudo lhes cai do céu. Ou esperam que caia.
– Mas isso não invalida o que eu queria dizer. É que quer dizer, andei eu aqui a esmourear o lombo toda a vida e mais seis meses e para quê? Para isto? É isto que é a vida? Agora um destes dias dá-me uma macacoa, lá me vou eu, e pronto… que tenho para contar?
– Olha, que duma macacoa ninguém está livre. Lembras-te da Palmira?
– Palmira?
– Sim, a do Roberto.
– Qual Roberto?
– Ai homem, e depois eu é que estou esquecida. O Roberto que trabalhava ali na Pólux.
– Ah, sim, sim! Grande homem. Que Deus o tenha! E grande mulher também. Já não a vejo há muito é um facto. Que é feito dela?
– É isso que te queria dizer. A Palmira, também estava muito bem. Um dia à noite pronto. Não se sabe o que lhe passou na cabeça, pimba. Foram dar com ela que já não falava nem mexe as patas. Tá num lar, numa cadeirinha de rodas.
– Ora coitada! E diz-me tu se isso é viver?
– Bem, ela viver lá vive. Foi para um lar da misericórdia, ali ao pé daquelas escadinhas tortas, tu conheces, dão-lhe o caldo à boca todos os dias e têm de a lavar e vestir.
– E vale a pena chegar a esta idade para isto? Tanta idade?
– Oitenta e sete.
– Ora vê lá! Oitenta e sete anos!… E que fez essa mulher? Que fiz eu?
– O que ela te fez não sei, acho que nunca te fez nada.
– Não Adosinda, não percebes. Uma vida inteira e que deixei eu feito? Que obra tenho?
– Mas que obra queres ter homem? Tu não és engenheiro!…
– Antes fosse. Ao menos podia deixar prédios, pontes…
– E que te advoga isso? Pontes? Temos ali duas. Sabes quem fez a ponte Vinte e cinco de Abril? Ou a Ponte Vasco da Gama? Lá estão e não faço ideia quem as fez…
– Tens razão, também não sei, mas alguém há-de ter sido. E o seu nome ficou na história.
– E que história queres tu agora?
– Não sei bem. Mas sinto-me vazio. Um vazio enorme por dentro.
– Ai homem, para isso já sabes que tens o Omeprazol. O doutor Antunes sempre a dar-te os remédios e tu nunca queres saber deles. Se calhar é melhor ires comer qualquer coisa.
– Não, não é esse vazio! É um vazio na alma.
– Tu hoje não estás bem, homem.
– Pois não Adosinda. É que me apercebi que vir todos os dias dar pão a pombos sabe a pouco. Depois de passar uma vida inteira atrás de um balcão de ourivesaria a ganhar tuta-e-meia, acho que não era esta a ideia que eu tinha para mim.
– Então qual era a tua ideia?
– Não sei bem Adosinda. Mas quando vejo na televisão, aquelas pessoas todas. Médicos que descobrem curas para doenças, pessoas que escrevem livros, tanta gente que faz música linda, essa gente que agora os moços todos estudam e vêm nos livros… e eu?
– Tu também querias vir nos livros? Com o teu retrato e tudo?
– Sim Adosinda, sim. Queria ser importante. Quando era moço, um dia pensei que podia ser alguém. Vir para Lisboa, era uma terra grande, grandes sonhos. Podia ser quem quisesse.
– Eu também queria muita coisa. Quando era moçoila via as outras dançar e pensava que também gostava de dançar. Acho que a Deolinda ainda se meteu nisso, mas partiu um pé, coitada, e depois o pai deu-lhe o arroz. Obrigou-a ir servir assim e tudo…
– Ora vês? Tanta coisa que podíamos ter sido e não fomos!… E porquê?
– Sei lá agora porquê homem. Porque tínhamos de comer. E a comida não era de graça.
– Um grande disparate foi o que foi. Tinhas de comer. E para comer tinhas de trabalhar. E então arranjas um trabalho que não gostas.
– Sim…
– E passas uma vida inteira a trabalhar num trabalho que não gostas, para comeres. E para que comes?
– Homessa! Como porque preciso, para viver! Senão tenho fome.
– Sim. Para viveres. E vives para quê? Para ires para aquele trabalho que não gostas, para ganhares para comer.
– Andas às voltas, já disseste isso.
– Porque é isso mesmo mulher. Porque andámos a vida às voltas e não saímos do sítio.
– E para onde querias tu sair?
– Olha, não sei! Mas sair! Nunca fui a Paris, Nova Iorque, Londres, Berlim!… Nada, nunca fomos a lado nenhum!
– Fomos a Tróia com o teu filho, naquele dia de…
– Cala-te lá com Tróia mulher!
– Que resmungão!…
– Pois estou. Estou assim porque isto é uma tragédia! Uma cidade tão grande, tão cheia de gente, tantas oportunidades e nunca aproveitei nenhuma. Nunca fui a lado nenhum, nunca fui ninguém. Lisboa usou-me e gastou-me num círculo. Sempre às voltas, às voltas. Todos os dias, erguer, lavar, trabalho. Trabalho, comer, casa. Chegava sempre cansado…
– Lá isso chegavas, às vezes até a ver a novela adormecias…
– Vês? Tanto trabalho para quê? Para chegar a casa, dormir, porque nunca tínhamos tempo para nós. Para no dia a seguir ir fazer a mesma coisa.
– Então e agora que queres fazer homem? Está feito, já está.
– Pois está, mas é uma parvoíce. Porque fiz eu, fazes tu e fazem aqueles palermas todos que para aí andam. Olha aquele de fatinho. Com um calor destes. Anda de fatinho porque anda a trabalhar. Aposto que passa o dia num escritório a esmourear-se para andar também às voltas. E aquele, e aquele, e aquele…
– Ah… e aqueles! Olha aqueles tão novos! São dois rapazes?
– Hã?
– Ali ao fundo homem, ao pé do quiosque! Um está com o boné!
– Sim, são porquê?
– Não vês que estão de mão dada?
– E então mulher? Se calhar são irmãos!…
– São, são…Eu cá sei o que são, no meu tempo não havia nada destas coisas. Pouca vergonha aqui nas cidades. É isto que Lisboa tem. E ainda por cima começam tão cedo.
– Que queres? Sinais dos tempos.
– Que quero não sei. Sei que não havia nada disto, nunca tal se viu.
– Sabes que te digo? Que sejam felizes! Ao menos estes não andam às voltas!
– Não andam? Então andam a quê?
– Desafiam o sistema. Não se importam com o que dizem e pensam deles! Vivem a vida, que era o que eu sempre devia ter feito!
– Ai homem credo! Devias ter andado com outros homens? Olha que me vou já embora!
– Não Adosinda! Não exageremos. Olha o respeito!… Devia ter vivido a vida! Devia ter sido capaz de remar contra a maré! Não sei bem que maré, que sistema é este que nos sufoca, mas devia ter sido capaz de remar contra ele. Estes ganapos estão-se nas tintas para o sistema, para o correcto, estão a viver a vida que querem aqui e agora à nossa frente!…
– E viver a vida é isto? É isto que tanto te orgulha?
– Não mulher. Vamos a ver se nos entendemos… O que não me orgulha é andar às voltas! É ter feito sempre a mesma coisa, nunca ter tido coragem de dizer «Não! Não é assim que quero viver, não quero mais disto!». Devia ter ido contra tudo e contra todos para realizar os meus sonhos! Ter remado contra o sistema, contra a maré instituída pela sociedade!
– E quais eram os teus sonhos?
– Ficar na história e ser alguém, já disse. Deixar obra feita, obra que se visse!
– Para também vires nos livros…
– Sim, porque não? Para um dia que morra, se lembrarem sempre de mim! Ficar eterno para sempre na memória das pessoas. Porque sabes Adosinda, quando morreres, ninguém mais se lembra de ti.
– Eu quando morrer quero é paz e sossego. Se se alembram ou não é como calha.
– Que torpe indiferença! Que palavras indigestas!
– Como queiras.
– Quando morreres claro que tens paz e sossego. Isso é o que não te há-de faltar. O que me preocupa é que tenhas tanta paz e sossego em vida!
– Mas não é o que todos queremos?
– Cuidamos, Adosinda, Cuidamos. Na verdade queremos que nos chaguem a cabeça de alto abaixo. Só quando nos melgam é que nos sentimos úteis. É que sentimos que temos valor. Agora quem te melga?
– Melgas-me tu e olha que não é pouco!…
– Sim, também. Mas sem ser eu quem te liga?
– Olha, ligou há dois dias a prima Cândida. De resto mais ninguém. Qualquer dia mando tirar o telefone. Estamos a pagar aquilo nem sei para quê. E olha que ao preço que as coisas estão já começo a achar aquilo um luxo.
– Deste-lhe beijinhos meus?
– Dei sim. Ela diz que qualquer dia vem a Lisboa ver-nos.
– Óptimo. Ao menos uma alma que não se esquece da gente. Quando chegamos a esta idade e já não servimos a ninguém, todos nos esquecem. Vês o que te dizia?
– Sossego.
– Demais!
– Olha, vamos andando que já estou a ficar dormente das pernas.
– Sim, vamos devagarinho por aqui abaixo.
– Raio de cidade que não na souberam fazer direita.
– Sete colinas, sete. Pelo menos diziam os antigos, agora já devem ser mais.
– Ainda te lembras dos nomes?
– Todos. Cinco santos e dois Cc.
– Como?
– Cinco são nomes de santos. E duas começam por C.
– Santo António…
– Não, isso é a festa. As colinas são São Roque, São Vicente, Santo André, Santa Catarina, Santana, Castelo e Chagas.
– Ah!… Que bela memória. Mas isto é tudo aqui pela baixa e pelo Bairro Alto.
– Sim, por isso dizia que são as antigas. Porque a cidade era só aqui. Se fosse hoje, já tinham de contar os montes lá para as Amoreiras, Benfica, para as Avenidas…
– Cresceu muito.
– Ainda me lembro quando tudo aquilo eram hortas. Tantas hortas havia lá para cima.
– Hoje é só carros e fumarada.
– Cuidado aí com o caixote.
– Ora, e está um carro no passeio, como a gente passa?
– Pelo meio da rua, vamos que não vem ninguém.
– Isto é uma pouca-vergonha. Enchem os passeios com os carros e nós é que temos de andar pelo meio da estrada.
– Aperta o casaquinho, se calhar agora tens frio.
– Não, estou bem assim. Olha e se entrássemos ali?
– No café?
– Porque não? Tenho saudades de um miminho… há tanto tempo que não como um bolinho…
– E o colesterol?
– Ai homem, não eras tu que dizias que devíamos viver a vida? Não andar às voltas? E nem uma coisa diferente podemos fazer?
– Tens razão mulher, tens toda a razão. Vamos começar já! Sentemo-nos então. E vamos pedir um galão e um bolo. Com muito creme! Que se lixe o colesterol. E sabes que mais?
– O quê?
– O barco. Amanhã de manhãzinha fazemos assim. Apanhamos o carro até sete rios. Pode ser o cinquenta e oito ou setecentos e cinquenta e oito como agora se chama. Mudamos para o comboio até Setúbal. E ainda te levo a Tróia.
– Ai homem! Estou a gostar!… Mas não será muito cansativo para nós?
– E se for? Alugamos um quarto de hotel e dormimos lá. Voltamos só depois de amanhã!
– Dormir fora? Comer fora?
– Temos de dar satisfações a alguém? Os pombos não no-las vêm pedir de certeza, e para casa já ninguém telefona, nem o ingrato do teu filho.
– Ele também é teu…
– Que seja. Não damos satisfações a ninguém. Vamos.
– E o dinheiro?
– Para que servem as poupanças? Para morrermos e o deixarmos ao mundo? Eles trabalham que se desenrasquem, andamos aqui a poupar para quem? Para nós andarmos às voltas e eles às voltas? E quando envelheceram andarem eles miseráveis? Não mulher, já chega. É hora e mais que hora de abrir os olhos!
– Ai homem, agora estou a gostar de te ouvir.
– E depois haveremos de ir aos museus. Lisboa tem tantos museus bonitos, vamos vê-los.
– Sim, sim! Não precisamos vir ao jardim todas as tardes!
– Claro que não! Temos sido uns patetas! Temos de andar e divertir-nos enquanto há saúde. Já somos velhos, já é tarde para vivermos contra o sistema, mas não é tarde para gozarmos o que é nosso! Se não há solução há remedeio!
– Já diz o povo, mais vale tarde que nunca!
– E mais! Um dia destes, quando tivermos corrido Lisboa de ponta a ponta, compro um computador, desses que se põem no colo e não têm fios e escrevo um livro. Como esta malta nova agora faz. Um livro a contar a minha história. E a minha ideia. E então aí, nesse dia, quando escrever, já vou ter uma obra feita!
– Ah! Um computador?
– Sim! Daqueles que posso trazer para o jardim e tudo! Quero dizer e mostrar a toda a gente, que se quisermos, só depende de nós.
– Depende o quê?
– De nós. Ou deixamos que a cidade nos gaste como trapos, ou a usamos a nosso favor. Ou andamos sempre às voltas, ou então damos-lhe nós a volta! E eu ainda vou dar a volta a esta Lisboa, Adosinda, ó se vou! Vais ver!…