Vasco andava deprimido com a vida. Subia-lhe uma crise existencial pelo esófago acima quando sentia que já não tinha lugar no mundo. As suas extensas habilitações literárias, todo um percurso imerso nos clássicos, nos banquetes, simpósios, repúblicas tinham-no tornado um ser acre e inane no plano social, a ponto de ninguém perceber os seus excelsos retóricos e os seus labirínticos raciocínios. Por outro lado, a sua ínclita perfeição desmesurava-se em torná-lo um frangalho quando julgava os seus próprios trabalhos. E então enegrecia-se-lhe o ânimo cuidando que jamais faria algo de bom nesta vida, seria um desperdício cada dia que corria, mais próxima a morte e em redor apenas o deserto povoado pela sua ilusão de incompetência.
Que não haja dúvidas que Vasco se quedava numa pura crise existencial ilusória: apenas uma visão distorcida do seu ego lhe permitia ver má qualidade nas coisas mais puras que escrevia e realizava. As suas obras seriam a roçar o genial caso alguma vez alguém tropeçasse nelas, porém queria o destino, qual uma maldição vangoguiana, que tal não fosse perceptível na sua errante existência. Assim, o pobre rapaz arrastava-se ruas fora, cabisbaixo, atacadores em desalinho, braços pendentes achando que tudo era abstruso e nada disto faria sentido.
Até ao feliz momento em que o mesmo desalinhado atacador se enlaçou na sola e Vasco, tropeçando, esbracejou para evitar a queda, ergueu os olhos e o coração ao alto e reparou que estava diante de uma nova escola, na qual nunca houvera reparado, no bairro. Podia ler-se “escola de analbafetização para mestres e doutores desiludidos: recupere o júbilo da inocência”. E foi uma epifania a percorrer-lhe o sangue. Matriculou-se e num ápice era vê-lo todo animado a frequentar as aulas de analfabetização. Primeiro começou por ter de esquecer tudo o que sabia – começar a disjuntar palavras quilométricas, uma raiva voraz até o otorrinolaringologista e o electrodoméstico não fazerem mais sentido. E aos poucos as sílabas foram-se apartando, e as fontes perdendo relevo, e as letras começaram a nascer por elas próprias. Cada uma como um mero objecto gráfico, estético, de contemplação mas vazio de sentido. Quando Vasco terminou o curso, e recebeu o seu lindo diploma, desenhado com flores e casinhas, com as janelas presas aos cantos, sentiu que tinha recuperado a sua vida.
Aquela maldição, as palavras, o saber conjugá-las e trazer-lhes sentido, a língua, a forma imaterial como se constrói a lógica do nosso cérebro e condiciona a maneira como apreendemos o mundo para sempre, já não era para sempre. Vasco aprendeu a desler, e isso era tão importante nesta fase da vida como tudo o resto. Aprendeu a vida dos simples, a inocência de quem nunca se preocupou porque não tem consciência que há coisas para se preocupar, aprendeu a não ter medo porque não tem noção que há coisas das quais se pode ter medo.
É vê-lo hoje pelas ruas, de rabo alçado e peito para fora, cabeça erguida a olhar os toldos, os cartazes e a pasmar com os rebicoques dos desenhos, de repente era como se toda a China, ou até Marte tivessem vindo visitar a cidade. A cidade, essa, continuava a mesma, apenas a maneira como era olhada e interpretada tinha mudado radicalmente. E isso bastava para agora ser feliz, para sentir que não era mais um incompetente, porque, na realidade, já não tinha competência sequer para fazer um escrito mal feito. Já não interessava deixar obra feita porque já não saberia como a fazer, e assim ficou livre e num permanente estado estético, um estado de eterno deslumbramento sobre todas as coisas que aparecem à frente, uma voracidade perante cores e odores, perante texturas, perante todas aquelas coisas que os nossos sentidos podem percepcionar mas que estavam negligenciadas, ofuscadas pelas que tantos anos andou a ler. A atenção, o ponto de foco houvera mudado, e era como se tivesse voltado a ser criança. Sem preocupações, apenas a de ver, sentir, viver, viver, viver…