Porque gostamos das músicas que gostamos? (in Portuguese)

Haverá com certeza milhões de razões diversas para responder a esta questão, no entanto eu gostaria de chamar a atenção sobretudo para os factores extra-sonoros.

Na concepção moderna de música, e essencialmente comercial, a chamada «Música absoluta», quase não existe. Entender-se-ia por música absoluta a que é totalmente instrumental, sem designação ou programa. Uma música que se baste a si mesma sem qualquer referência externa para lá do som. Como por exemplo, Sonata para violoncelo e piano nº2. Isto não nos diz nada.

No entanto, mesmo numa música para piano solo se eu tiver o título de “A neve dança”, então já estou a remeter para algo extra-sonoro. Um título de certa maneira já é programático, já quer induzir algum estado de espírito ou imagem na mente do ouvinte. Mais ainda, quando temos um programa inteiro, uma história.

Quando passamos para uma banda sonora isso então é fulcral. Mais do que a música, fixamo-nos nas imagens, nos acontecimentos narrativos, na história. E os sons ficam associados. E a música é-nos introduzida no cérebro combinada com a situação. E criam-se clichés, ou precedentes. E passamos a associar determinadas músicas com determinadas cenas de filmes.

A letra é outro factor muito importante. Quando associamos uma letra a uma música estamos a emprestar-lhe toda uma carga emotiva, reflexiva, subjectiva. E o ouvinte fica guiado pelo espírito do poema. A música torna-se quase acessória, por vezes. Existe o caso mais extremo da declamação de poesia acompanhada com música. A música perde a primazia para a palavra. Na história da música temos muitos casos de guerras para decidir quem deveria ter a primazia: a palavra ou a música quando se construíam obras que levavam as duas coisas.

Num espectáculo como a Ópera todos estes factores ganham relevância suprema: os cenários, os figurinos, os personagens, a narrativa. A música é apenas um pequeno episódio quase irrelevante de um todo que ali está montado. E quem gosta de Ópera como um todo poderá detestar a mesmíssima música se apresentada fora desse contexto e com outra letra que não a originalmente concebida.

Assim, quando pensamos na nossa cultura musical ocidental contemporânea verificamos que já muita pouca música absoluta nos resta. Quase tudo o que nos rodeia está associado a outras coisas: títulos, imagens, histórias, roupas, cenários, vozes características. Toda uma parafernália de factores extra-sonoros que aprendemos a associar à música e que parecem condicionar o nosso gosto. Serão eles, na verdade, os maiores responsáveis pelo nosso gosto particular por esta ou aquela música.

Daí que possa resultar numa falácia dizer-se «Gosto muito daquela música por causa da letra», por exemplo. A não ser que se considere, como parece que está a acontecer, que «Música», já não seja simplesmente som (ritmo, dinâmica, timbre, altura, expressão) mas sim todos os factores que constituem um todo. E assim a letra será parte integrante da música. Cenário será parte integrante da música. Imagem será parte integrante da música.

A música parece ter ganho novas dimensões que tomam conta de si. E os novos ouvintes parece cada vez mais terem dificuldade em abstrair-se deles e em sequer verem sentido em fazê-lo. E a música cada vez vale menos por si mesma.

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One thought on “Porque gostamos das músicas que gostamos? (in Portuguese)

  1. E isto já nos remeteria para o post em que referias o facto de se ouvir a música de phones e de olhos fechados…
    Por minha conta diria que a música era arte. A música é negócio do legado artístico.
    Especialmente quando se refere à inclusão da dança, da voz, do cenário, e, em certo extremo e em tom já jocoso, da bijuteria do intérprete! 😛

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