Contorno e memória (in Portuguese)

O que confere identidade musical a um determinado trecho de música? Quando ouvimos um trecho como sabemos o que estamos a ouvir e como sabemos se já o ouvimos antes ou não?

Poderíamos pensar intuitivamente que determinada altura de notas, o ritmo, quando se repetissem, isso constituiria algo que memorizámos e que seríamos capazes de reconhecer. Tal como quando olhamos para uma citação de um texto e lembramos «já vi esta frase escrita algures!».

Mas atentemos nestas pequenas três frases musicais:

Ora, na realidade são três frases que poderemos chamar claramente distintas. Há apenas a primeira e a última nota em comum entre elas, todas as outras notas são diferentes. O ritmo, esse, varia tal como a forma de atacar as notas. No entanto, e contra tudo o esperado (ou não), o nosso ouvido vai identificar as frases como sendo «parecidíssimas, até são praticamente a mesma coisa!».

Na realidade, alguém que não saiba ler música e olhe apenas para as três partituras é capaz de achar o mesmo: «São frases parecidíssimas! Temos ali um gatafunho por cima de uma linha, depois uma coisa meio a descer, tipo escadinha, e termina com um gatafunho lá no alto!».

O que é que a pessoa que não sabe ler música e o nosso ouvido, que sabe ouvir música, fizeram em comum para acharem as três frases parecidas e para contrariarem a leitura musical que diz que elas são muito diferentes?

Analisaram aquilo que poderemos chamar por contorno musical. O contorno musical é semelhante ao contorno gráfico, tal como podemos observar no desenho da pauta: na realidade o contorno musical espelha-se em contorno gráfico muitas vezes. As notas não precisam ser as mesmas, nem sequer o ritmo. Apenas precisa de haver um certo padrão, uma certa semelhança. Neste caso, o ponto de partida e chegada são os mesmos. E o que acontece no meio é uma descida rápida. E isso basta. O ser aos saltinhos ou mais seguida, as notas serem mais acima ou um pouco mais abaixo é irrelevante para o reconhecimento musical.

O nosso cérebro tem a extraordinária capacidade de assimilar estas frases musicais como um todo e não como a soma de cada uma das suas partes. E assim, quando compara os “todos”, descobre relações entre eles. E só assim é possível fazer-se, por exemplo, «Temas e variações» e estas funcionarem musicalmente. Porque cada variação tem o mesmo contorno musical que o tema original.

Assim, percebemos que o que confere identidade a uma determinada frase musical está longe de ser a simples altura das suas notas ou o seu rigoroso ritmo. Se semanticamente “Caneca” é muito diferente de “Caneta”, porque têm significados completamente diferentes, musicalmente são muito parecidos porque o seu contorno sonoro é inequivocamente semelhante. Da mesma forma “Corneta” ainda o seria e até eventualmente “Cohgkdjta” que nem sentido semântico tem.

A questão de ordem musical põe-se então num patamar complexo. Até que ponto podemos dizer que uma frase com contorno musical semelhante é a mesma frase? Se eu tocar «do re mi» toquei uma frase. Se eu tocar «sol la si» estarei a tocar outra? É que a segunda tem o contorno igual ao da primeira. Na realidade são duas frases musicais tão parecidas que são a transposição uma da outra a uma quinta de distância. E sempre que transpomos uma frase a sua identidade supostamente preserva-se – se não tivermos ouvido absoluto e ouvirmos as duas frases, digamos, com meia hora de diferença o nosso cérebro dirá que são «a mesma», porque reconhece o mesmo contorno e padrão, não tendo fixado frequências exactas. Se eu tocar aquelas frases do nosso exemplo inicial de seguida percebemos que são semelhantes mas não iguais. No entanto se eu as tocar com meia hora de intervalo arrisco-me a dizer que as vamos perceber como iguais, porque alguma informação se perdeu na memória. Ficou, contudo, o contorno. É tal como vermos uma pessoa na rua e meia hora mais tarde a tornarmos a ver com roupa parecida. O mais provável é dizermos que a pessoa está na mesma. Mas, na realidade, a pessoa mudou a roupa, tirou o relógio e está meia hora mais velha. Essa informação não ficou retida.

Assim, a identidade que atribuímos a uma frase musical parece estar, de alguma forma, dependente da nossa percepção do seu contorno e da memória que guardamos do mesmo – quanto mais similar é o contorno mais tendencialmente diremos que a frase «é a mesma», e quanto mais tempo decorrer entre duas audições mais diferenças permitiremos a esse contorno para permanecermos convictos de que ouvimos a mesma coisa.

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