Ando a ler “Music, Language and the Brain” de Anniruddh Patel, um livro maravilhoso que tenta cruzar o lado científico e neurológico do Homem com questões musicais. Nele é relatado como Foris, nos descreve um episódio surpreendente acerca da língua Chinantec, falada em certas regiões do México. É uma linguagem tonal, com 5 tons diferentes. Isto significa que a mesma palavra dita em cinco tons distintos significa cinco coisas diferentes. Neste tipo de linguagens a altura (nota) do assobio actua como um diferenciador. O que pode causar situações surpreendentes:
«Virtualmente tudo o que pode ser expresso verbalmente pode ser comunicado assobiando. O exemplo mais complexo de que me lembro foi quando um avião de mercadorias estava para chegar. Devido a chuvas intensas reparei que a pista de terra batida precisava de ser remendada devido à erosão. Fui ter com o presidente da câmara e solicitei ajuda, algo que era da responsabilidade da polícia municipal por aqueles dias. O presidente estava a meio quilómetro de distância da polícia e ele meteu os dedos na boca e assobiou para obter a atenção da polícia. Eles responderam que estavam a ouvir e ele então assobiou uma longa mensagem. Eu perguntei-lhe o que ele tinha assobiado e ele disse-me que tinha dito “O avião vai chegar em breve. A pista de terra batida precisa de ser reparada. Peguem nas pás, picaretas e carrinhos-de-mão e vão para lá imediatamente”» (1)
Isto parece-me ser uma evidência absolutamente notável da capacidade humana e um mote imensamente promissor para a relação entre língua, linguagem e música e o modo como o cérebro humano apreende e se movimenta no mundo dos sons. A partir do momento que certas relações são compreendidas e descodificadas e em que realmente conseguimos passar informação palpável unicamente com base em diferenças de alturas. Já havia evidência que os povos com línguas tonais tinham muito maior percentagem de pessoas com ouvido absoluto, que são capazes de saber em que frequência certo som está quando o ouvem. Apenas vamos percebendo que até essa percepção do som é construída desde a infância e não uma propriedade inata. E que se calhar, se hoje é um duro de ouvido, ou não consegue saber se o que está a ouvir é um fá, um sol ou um dó, tal se deve não a ter um defeito qualquer ou a ser burro, mas a simplesmente ser ocidental e não ter sido criado desde tenra idade num ambiente onde a tonalidade tivesse realmente interesse para a linguagem!… Assobiar tudo o que queremos e fazer-mo-nos entender? Mas isto cabe na cabeça de um Europeu?
Mais, ainda outro exemplo lhe trago, extraído do mesmo livro para se compreender como a nossa noção do que é música está totalmente dependente de convenções e estruturações em torno de certos parâmetros arbitrários e não universais. Conta-se sobre um etnomusicólogo que ouvia um aborígene cantar. No final, o etnomusicólogo registou as notas do canto do aborígene numa partitura (convertendo-as/”arredondando-as” a uma escala ocidental, claro) e ele próprio interpretou-as de volta. E não é que o aborígene ficou pasmo porque não reconheceu nada? “Eu não cantei absolutamente nada disto!”. As coisas a que o etnomusicólogo ocidental deu importância (à altura das notas, à dinâmica, ao ritmo, etc) são coisas que não interessavam absolutamente para nada ao aborígene, nem definiam a sua música. Quem pensa que música são alturas e ritmos pode começar a pensar tirar o cavalinho da chuva. O aborígene demorou algum tempo, mas conseguiu explicar que o que era relevante não era uma nota e a outra, mas sim a passagem entre uma nota e a outra e todos os microtons, o portamento e a maneira como o fazia. Ou seja, se calhar não interessava que ele cantasse dó-fá ou dó-sol ou até ré-sol. O que interessava era o que ele fazia e maneira como fazia para ir de uma nota a outra, fosse ela qual fosse e levasse o tempo que levasse. Assim, o que nós chamaríamos três “músicas” completamente diferentes dentro do nosso sistema, para o aborígene poderiam ser uma e a mesma música – a mesma maneira de ir “de um sítio para o outro”. Por outro lado, entre as mesmas notas “dó-sol”, durando um tempo, o que para nós seria sempre “a mesma música” com uma ou outra variante (como fazem os fadistas por exemplo, ou cantores de ópera quando ornamentam), se calhar o aborígene é capaz de fazer dezenas de “músicas” diferentes! E esta, hein?…
(1) Foris, D. P. (2000). A grammar of Sochiapan Chinantec. Dallas, TX: SIL International