Pensemos um mundo onde os jovens saem da escola a mal saber ler e escrever, sem capacidade para analisar um texto, sem saberem fazer contas e com noções tremendamente deficientes ou inexistentes de química e física. Ficaríamos alarmados. Teríamos a noção que estes jovens continuariam a ser capazes de se integrar (melhor ou pior) na sociedade e conseguiriam fazer a sua vida. A questão é que sabemos que teriam uma cultura geral tão deficiente que isso afectaria imenso a forma como se relacionam com o mundo à sua volta. Esta falta de conhecimento dos sistemas simbólicos e formais que nos rodeiam (em todo o lado estão coisas escritas, em todo o lado se processam números, por todo o lado há química e física) faria mossa das grandes: ao lerem uma bula de medicamentos, ou o rótulo de um produto alimentar não seriam capazes de distinguir o que lá está escrito – se são componentes genuínos ou se serão tretas, balelas ou até mesmo venenos. Se lessem o manual de instruções de um qualquer aparelho não conseguiriam funcionar com ele por essa via – muitos aprendem-no por tentativa e erro, intuição, e à custa de fazer o aparelho funcionar, erradamente, umas quantas vezes. Os jovens desenrascar-se-iam mas não teriam um conhecimento profundo e sério do mundo que os rodeia. Não teriam a capacidade de o questionar, de ser eficientes, deles próprios produzirem novo conhecimento ou novas formas sistemáticas e consistentes para lidar com a maioria dos problemas. Nada contra e a apontar ao conhecimento intuitivo e que ganhamos à nossa custa, mas a falta de conhecimento sistemático, de conhecimento científico, de lidar com sistemas formais nota-se, e bem, e é uma lacuna grave.
Daí que as escolas ensinem Línguas e análise de discurso e poesia, Matemática, Ciências, etc. Que procurem incutir nos jovens todas estas ferramentas abstractas e de pensamento que lhes permitam melhor inteligir e lidar com o mundo, e ficarmos chocados quando os jovens não as dominam ou, pior, não as conhecem de todos.
Todavia, parecemos não nos importar absolutamente nada com isso quando isso acontece com a música.
Achamos muitíssimo natural que os jovens cantem e dancem, tenham experiências sociais musicais relevantes (idas a concertos), ouçam música nos seus ipods, telemóveis, no computador, na rádio, na televisão, nas bandas sonoras que nos rodeiam, nos elevadores, nas lojas, em todo o lado. Porque a música está em todo lado. É uma experiência mundana, é uma experiência social e cultural que nos acompanha sempre na sociedade e cultura em que estamos inseridos, em que vivemos.
Pior, valoriza-se um ensino da música, nas escolas, cada vez mais experimental e vocacionado para “alargar horizontes” das crianças proporcionando-lhes experiências sociais de canto e toque em grupo. Eventualmente de alguma audição e muito pouca teoria, apenas pela rama, visto ser escola primária ou básica, e contam-se pelos dedos as que oferecem música no 3º ciclo de forma consistente. Vejo colegas professores mais preocupados em frequentar formações pedagógicas de como entreter miúdos, e a aderir a correntes sensacionalistas de experienciar o corpo e a interacção do corpo com o som e de como viver a música que outra coisa.
Não tenho nada contra, repito, nada contra viver a música. E acho uma experiência importantíssima e de primeiro relevo. Tal como não tenho absolutamente nada contra e tudo a favor que se viva o mundo, que nos estampemos ao comprido, que tenhamos adrenalina. Tenho tudo contra que se seja descerebrado ou inculto! Que não se compreenda a tradição, história e os sistemas em que vivemos.
Tal como não aceito que um jovem saia da escola sem saber ler nem escrever, ou fazer contas, porque acho uma aberração, porque então a escola não cumpriu a sua missão de lhe proporcionar ferramentas para o mundo, também não posso aceitar que um jovem complete a escola aprovado à disciplina de música e não saiba ler uma partitura, analisá-la minimamente, ou ter um mínimo de noção de teoria musical e de história da música.
Temos de perceber de uma vez por todas que se existe uma disciplina de Educação Musical planeada até ao 9º ano ela para alguma coisa lá está. Temos de perceber que tem de ter um conteúdo e um programa que não pode limitar-se a ser vago e temos de ter consciência que ter esta disciplina e depois passar a vida toda com ela apenas a “experienciar música” a deixar os jovens “viver a música” e “alargar-lhes horizontes” é uma aberração tão grande como passar o básico todo a deixar os jovens “experienciarem o conhecimento” e “alargar-lhes os horizontes” e “motivá-los”. É passar um atestado de incompetência aos professores e um atestado de menoridade aos jovens.
Os jovens já experimentam música fora da escola. Já têm todo um conhecimento intuitivo do que música, dança, canto são. Eventualmente terão menos oportunidades de tocar certos instrumentos. Mas a escola, tirando os instrumentos Orff, também não proporciona grande coisa e é lamentável (quantos de nós tiveram oportunidade de pegar num fagote, numa viola de arco, num trompete enquanto estivemos na escola?).
O que a escola não cumpre, a avaliar pelo conhecimento empírico geral à minha volta, é o papel de ensinar o conhecimento científico da música – as ferramentas essenciais para assegurar a inteligibilidade de todo um mundo cultural e social musical que nos rodeia. E ninguém se parece preocupar com isso. Achamos natural e não nos ralamos que não se saiba ler uma partitura ou que não se saiba o que um acorde é, e é logo um grande especialista quem o faz.
E ninguém está a reclamar nada transcendente ou algo irrelevante: se vivemos numa sociedade e cultura carregada de música por tudo quanto é lado e com uma história de tonalidade e modalidade, com uma tradição de compor música de determinada maneira, com uma tradição de música popular e folclórica, de música rock, de dança à nossa volta, o mínimo que se exigia era que fosse transmitido nas escolas o suporte básico teórico dos sistemas formais que constroem essa tradição. E a história dessa tradição. E que se exigisse para efeitos de aprovação que os jovens soubessem isso.
Assim, tal como não se exige que a escola básica seja universidade, mas sim que forneça as ferramentas essenciais também só se exige que a escola básica forneça as ferramentas essenciais ao entendimento da música. Os colegas poderão dizer que muitos deles já o fazem: que faz parte dos programas ensinar a ler partituras, que faz parte dos programas alguma teoria (muito pouca) da tonalidade, que fazem parte dos programas toda uma série de coisas que aqui refiro como essenciais. Isso não está em causa.
O que está em causa é a aplicação e a eficácia desses programas. Porque obviamente eles não estão a resultar. Eu conto pelos dedos os alunos que saem do 9º ano a saber ler uma partitura quando isso é matéria essencial do 5º ano. É tão grave essa lacuna como eu ter um aluno do 9º ano que ainda não saiba ler ou fazer uma conta de somar. Mas ao contrário do choque com estas duas últimas lacunas toda a gente acha normal que “se esqueçam de ler pautas, porque também não sabem, nem praticam, nem acham relevante”.
Se a música nos rodeia, se a experiência de música nos afecta todos os dias como é possível não achar relevante saber ler uma partitura? É como alguém andar pelo meio da China, sem conseguir ler os cartazes, sem conseguir inteligir metade do que a rodeia. Consegue viver, mas é um viver mais pobre!
Voltamos ao princípio, conseguimos ser analfabetos funcionais e intuitivos. Conseguimos. Mas a escola então não cumpriu a sua missão.
Conseguimos desfrutar música e vivê-la sem sistemas teóricos e filosóficos, sem saber a sua história? Conseguimos, mas a escola não cumpriu a sua missão.
Mas nós enquanto sociedade não cumprimos também a nossa missão, ao negligenciar uma parte tão importante da nossa cultura. Ao achar que é irrelevante o conhecimento formal, teórico e histórico de um fenómeno que nos rodeia todos os dias a todas as horas.
Urge espicaçar esta parte. Tal como muitas outras. É o declínio da ciência e da cultura geral. Haja equilíbrio. O mínimo que se pretende é que metade do tempo que se passa numa aula de música seja a aprender teoria musical, solfejo, história da música, análise e escuta. A outra metade que seja então para o canto, para tocar, para socializar musicalmente, para orquestrar. É muito importante, repito, a parte prática da música. É fundamental, é a razão maior da sua existência.
Mas, essa parte já existe em grande oferta no nosso mundo intuitivo, na nossa sociedade, os jovens já têm essa parte em grande parte do tempo sem precisar da escola. O que eles não têm e é missão da escola assegurar-lhes é a transmissão do conhecimento. E o que toda a sociedade deveria cuidar é a preocupação em reter, aplicar e desenvolver esse conhecimento. Em utilizá-lo para tornar mais rica essa experiência.
E assim talvez tivéssemos mais gente numa Gulbenkian. Talvez tivéssemos mais gente a não achar que ópera são gritos e que música electroacústica é barulho. Talvez tivéssemos mais gente a compor e a fazer música e com a noção que fazer bem música não é pegar numa guitarra e atirar dois acordes. E que cantar não é meramente abrir a goela. Música também é isso, tudo isto são experiências importantes, mas é mais. E pode ser muito, muitíssimo mais do que isso. Não nos devemos ficar só pela rama. Uma sociedade evoluída e informada dever-se-ia importar, deveria querer saber. E qualquer adulto que se preze e teve paciência em ler este texto, hoje dever-se-ia sentir profundamente envergonhado se não sabe ler uma partitura, tal como se deveria sentir profundamente envergonhado se não sabe fazer uma conta de dividir ou multiplicar ou se não sabe que a fórmula química do sal de cozinha é NaCl. Afinal de contas a cultura geral básica sobre tudo o que nos rodeia é importante ou não é assim?