O quarto 403 (in Portuguese)

O Prof. Pimenta deslocava-se nessa semana a uma conferência por terras distantes do nosso país, bem encaixadas a Norte. O certame prometia e ele ia entusiasmado ensaiando a sua apresentação, no comboio, ora vagueando pelos corredores, ora frente ao espelho da minúscula casa de banho, ora contra o vidro que espalhava a paisagem contra o vento.

Chegou ao seu destino, já de noite, e enfiou-se de malas e bagagens num táxi rumo ao seu luxuriante hotel: houvera escolhido na internet o melhor da cidade, uma torre de quatro estrelas com piano bar panorâmico. Foi muito bem recebido pelo pessoal que lhe desejou uma boa noite e lhe forneceu as chaves do quarto 403, não fumadores.

O Prof. Pimenta apressou-se para o elevador e lá foi cantarolando de chapéu na mão e a arrancar o cachecol do pescoço. Enfiou o cartão na ranhura e o quarto abriu-se em todo o seu esplendor para desvelar uma enorme cama onde se iria afundar e perder em lençóis alvos e catadupas de fofas almofadas, um espelho a todo o comprido, janelas, duas delas, com vistas para o verde, um cadeirão e uma mesa com aperitivos, uma secretária para o seu computador com respectiva tomada de internet e candeeiro, um frigorífico e mini-bar, e um plasma de fazer qualquer sala corar de inveja. Armários e cofre electrónico. O Prof. sorriu muito contente, retirou o casaco, pousou a mala e espraiou-se na cama a ver as notícias, enquanto retirava alguns amendoins.

Passados cinco minutos achou que estaria talvez quente demais. Apesar do aquecimento estar ligado devido ao rigor da temperatura exterior, o bafo incomodava-o e não era possível abrir as janelas. Assim, não teve outro remédio que não ligar um pouco o ar condicionado. Um verdadeiro desperdício energético, pensou, ter um aquecimento que não controlava e ter de o arrefecer com outro. Disparates. Foi nessa altura que pensou em refrescar-se e verter umas águas. Dirigiu-se à casa de banho, que, por acaso, nem se tinha lembrado de inspeccionar à procura das famosas amostras de champô.

E é neste momento que ocorre o inusitado, quando se levanta e não percebe onde se dirigir. Porque não há porta. Olha à sua volta, no seu majestoso quarto e repara que não tem sítio para onde ir, a não ser para o hall. Mas seria isto possível? Vai, calcorreia os armários e nada. Procura cada canto, mas da casa de banho nem sinal. Ora que esta!… Coça a cabeça uma ou duas vezes e pensa que nada disto faz sentido. Em pensões baratas, efectivamente, a casa de banho é partilhada e fica ao fundo do corredor mas num hotel de luxo espera-se que cada quarto tenha uma incluída, é o mínimo. Já vagamente incomodado resolve sair do quarto e procurar a casa de banho.

Para seu magnificente espanto dá-se conta de um corredor com várias portas de quartos, mas nenhuma porta que dê a indicação de ser uma casa de banho partilhada. 407, 408, 409… os elevadores, um pequeno hall com janelas e cadeirões, o sinal de piso de não fumadores, a porta do staff, as escadas, mas nada de casa de banho. Já muito intrigado resolve apanhar o elevador e dirigir-se à entrada.

Quando chega ao piso 0, atenta na passagem para a sala do pequeno-almoço, atenta no lobby e vê de facto uma casa de banho, na qual entra e se refresca. Mas é uma casa de banho tipicamente pública: com urinóis, lavatórios, mas nada de banheiras ou bidés, e muito menos amostras de champô, como seria de esperar encontrar nos seus recatados aposentos. Já quase a galope, dirige-se para a recepção indagar o que se passaria.

Na recepção a estupefacção é geral. Mas como falta a casa de banho? Ela sempre lá esteve, nunca um hóspede reclamou e o quarto já fora tantas vezes utilizado. Todos os quartos, aliás dispõem de casa de banho, com banheira, bidé, secador, toalhas e amostras, tal como constam nas brochuras que lhe mostram. Mas o prof. Pimenta insiste que está na brochura, mas nada daquilo existe no seu quarto. E exige que o acompanhem. Muito contrariado o recepcionista sobe acompanhando o professor.

Quando entram ambos no quarto, o recepcionista dirige-se calmamente para uma parede em frente ao armário e fica especado a olhar para ela. Com ar completamente descompassado, desfaz-se em desculpas e garante não perceber como não está ali a porta, que sempre esteve ali, que a entrada de todas as casas de banho do hotel são no pequeno corredor de acesso ao quarto, em frente ao armário da roupa. Mas da porta nem sinal, apenas parede maciça. O recepcionista muito confuso, sai, e bate na porta ao lado. Um senhor estremunhado aparece e o recepcionista desfazendo-se em desculpas olha para dentro do quarto e, de imediato, vê a casa de banho onde deveria estar e aponta-a ao Prof. Pimenta, garantindo-lhe que aquela é a configuração usual de todos os quartos daquele piso e que também o seu deveria ter uma casa de banho.

Muito intrigados chamam o gerente, ao qual, outros empregados se juntam todos muito confusos e embasbacados a olhar para o quarto do Prof. Pimenta e para uma parede vazia. A senhora da limpeza diz que não entende, que ainda no dia anterior ali tinha estado e poderia jurar que limpou a casa de banho que garantia existir ali, que sempre houve uma, e que até se lembra que a hóspede anterior tinha deixado no bidé umas cuecas de renda, por esquecimento decerto.

A noite ia-se prolongando por entre muitas cabeças acenadas, muitos ombros encolhidos e já o gerente tinha requisitado as plantas do hotel, onde toda a gente poderia verificar que efectivamente uma casa de banho existia naquele local, na parede em frente do armário. O prof. Pimenta começava a ficar seriamente cansado, e preocupado com a sua conferência no dia seguinte, muito cedo, e o pior é que o hotel estava completamente lotado e não haveria maneira de lhe atribuir outro quarto. Assim, com um enorme pedido de desculpas, o prof. Pimenta limitou-se a fazer as suas necessidades na casa de banho comum e logo se haveria de pensar numa solução pela manhã, após o repouso.

Nessa noite o prof. Pimenta dormiu bem. A cama era enorme e confortável. E tinha tomado um ansiolítico para prevenir qualquer assomo de inquietação que lhe pudesse perturbar o sono. Quando raiaram as sete horas e a luz matinal invadiu o quarto já o prof. Pimenta se espreguiçava como novo em frente às janelas que davam para o cenário verdejante. Fez uns quantos movimentos com o corpo para desentorpecer os ossos e achou que teria de se lavar antes de descer para o pequeno almoço que o aguardaria. Por essa altura voltou a assomar à sua memória o episódio do dia anterior. No entanto, hoje não era ontem. E hoje estava mais lúcido. Assim pensou na velha frase de Sherlock Holmes que dizia que quando todas as hipóteses plausíveis falham, a mais inverosímil, por muito disparatada que seja, deve ser a verdadeira. Assim sendo, se as plantas do hotel diziam que havia casa de banho, se a empregada a houvera limpo no dia anterior, se se sabia que havia ali uma casa de banho… ela tinha de haver e pronto.

E assim, foi um muito confiante Prof. Pimenta que, com toda a convicção, se colocou em frente ao armário, fitou a parede diante de si e para ela avançou com toda a determinação do mundo.

Não doeu nada. E o mundo não desabou. Como esperado, a parede desmaterializou-se magicamente e o prof. deu por si diante de um resplandecente lavatório, banheira, bidé, secador, muitas toalhas e as famosas amostras de champô. Encolheu os ombros, sorriu muito e pensou que afinal a lógica continua a ser uma coisa que ainda faz muito sentido.

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